20/05/2012

Farto

Vim agora de uma sessão, numa livraria de Jerusalém, com um jurista americano defensor do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Tudo bem até aqui - quer na posição dele, quer no ambiente amigável da livraria. Mas depois, e sobretudo na parte de debate, tanto o autor como o promotor do evento, ambos gay e ambos favoráveis à igualdade no acesso ao casamento, foram repetindo coisas que já me cansam. A saber: que os gays não aguentam relações muito tempo; que os gays não se dão bem com noções de fidelidade e compromisso; que só minoritariamente os gays pensam em exercer parentalidade; que os gays estão normalmente bem na vida, gostam de coisas boas e de se divertir. Caricaturo, mas vai dar nisto. Pessoalmente estou absolutamente farto e sem paciência para um certo tipo de hegemonia intragay que promove estas ideias. Quantas vezes é preciso dizer que certos tipos de pessoa, relação e estilos de vida são mais visíveis porque têm mais poder para o ser? Que um dos seus poderes é formar gosto e estabelecer normas mainstream? Que a experiência real das pessoas com uma orientação sexual homossexual é tão diversa como a das outras? Que estas características supostamente gay são partilhadas também por pessoas e segmentos hetero? Que a maior visibilidade destas características entre gays se deveu às circunstâncias da homofobia e às escassas possibilidades de furar o seu controlo? Etc, etc, etc. É claro que a auto-ironia é saudável - sabemo-lo nós, gays, sabem-no os judeus e os negros. Mas há um limite: quando começamos a tomar a auto-ironia (que é uma forma de apropriação da homofobia) como descrição válida. Para quê perpetuar estas ideias feitas, quando há uma alternativa viável e disponível - a de acarinhar, elogiar e visibilizar a enorme diversidade que nos caracteriza, não só em termos de níveis de identidade social, como de percursos individuais de vida e personalidades? Será que eu não sou gay por ter a conta quase a zeros, não ser conduzido totalmente pela minha pila, não ter uma teoria tola e essencialista sobre a natureza masculina, passar por fases de conjugalidade comprometida e por outras de solteiria e experimentação, por gostar de parentalidade, ou por não mandar bocas misóginas? Se calhar... Mas prefiro pensar que o que há é muita gente escrava de hegemonias - como se não bastasse a nossa submissão à homofobia. Chiça, já chega. Vamos pra outra(s). 

1 comentário:

  1. o que analisou lembrou-me os textos do Edward Said, sim realmente, enquanto gays, negros, mulheres, judeus, às vezes interiorizamo-nos de um dado modo... e esquecemos a diversidade que há dentro de cada minoria! lembro-me de ter 15 anos de pouco ou nada saber de homossexualidade e pensar «sou o único!» e de ler uma revista informativa sobre o assunto que dizia: «há minorias dentro da minoria». claro que de acordo ou não com a nossa especificidade (à falta de melhor termo) formamos a nossa personalidade, mas acima de tudo somos o «indivíduo». há relações gays que duram 40 anos, terminando pela morte de um dos companheiros... o que eu com 15 anos num mundo marcadamente rural poderia ter em comum com um gay nova-iorquino ou mesmo lisboeta??? o mesmo que Hannah Arendt fala de si enquanto judia... estas questões são interessantes, mas as hegemonias têm um peso. e a homofobia internalizada, como o racismo internalizado, o machismo internalizado são bastante reais quotidianamente (o MVA já falou sobre isso várias vezes...). o problema é que a «imagem negativa» tem sempre um impacto maior e muitas vezes não nos damos (em sentido geral) ao trabalho de a desmistificar.

    às vezes em relação a nós próprios, recusamos ver o nosso potencial, porque simplesmente é mais fácil vermos o lado negativo, logo estagnamos...

    o ser humano, o ser humano... não o compreendo... claramente não sou antropólogo, muito menos poeta, caminho para a Filosofia a passos curtos...(lá está recuso-me o potencial)

    todo o ser humano deveria ter uma dose de auto-militarismo, reconhecer-se, valorizar-se... saber que enquanto parte de uma colectividade, tem a sua especificidade, tem o «seu poder de»... agir sobre, mudar sobre...

    o problema é que tem muito ativista LGBT (focalizando o assunto) que reproduz essa ideia da minoria, quando tenho conhecimento de outras realidades LGBT... não o mundo LGBT, mas mundos LGBTs... acima de tudo, diferentes percepções...

    eu confesso, os mass media têm muita culpa nisso...

    bem, abraço...

    On vous admire

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